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São Rafael - RN

Reportagem especial: São Rafael-RN cria serviço de referência para atendimento de população LGBTQIAP+


26/01/2024 10h33

As Políticas de Promoção da Equidade são consideradas um grande avanço no Sistema Único de Saúde (SUS) porque buscam garantir acesso e combater a discriminação contra populações vulneráveis. Dentre elas, está a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, instituída pela Portaria 2836, em 1 de dezembro de 2011. O desafio imposto às instâncias de governo é transpor as diretrizes estabelecidas em lei para transformá-las em programas e ações que realmente modifiquem o cuidado dessas populações no cotidiano dos serviços.  

No pequeno município de São Rafael, localizado no Vale do Açu, no estado do Rio Grande do Norte, duas situações de discriminação contra transexuais nos serviços de saúde motivaram a realização de um projeto voltado à garantia dos direitos desta população. "Eu estava na unidade e um rapaz trans entrou para pegar uma receita de alguém da família. Os olhares preconceituosos me perturbaram. No dia seguinte, houve um caso de desrespeito ao nome social de outro usuário no hospital municipal. Estamos aqui para acolher e não para julgar ninguém", afirmou a agente comunitária de saúde (ACS), Karla Michelle Nobre Minervino, que elaborou o projeto e apresentou para a gestão municipal. 

A primeira providência foi montar um grupo e convidar gestores e a comunidade LGBTQIAP+ para que pudessem expor suas necessidades. Foram realizados dois encontros que embasaram as etapas seguintes do projeto. Para compreender a discriminação no seio das próprias instituições do Estado, há que se entender os contextos locais, o que explica, de certa forma, a presença modesta da comunidade LGBTQIAP+ nas reuniões iniciais do grupo, atribuída ao receio de exposição. 

O município tem uma história peculiar. Em 1983, São Rafael foi completamente inundado pela barragem Armando Ribeiro Gonçalves. Uma nova cidade foi construída, o que levou a população a enfrentar um processo de desterritorialização. Os moradores, que viviam sobretudo da agricultura familiar e da extração de xelita (minério), tiveram que reinventar seus modos de sobrevivência, trabalhando sobretudo para o comércio e o serviço público. Boa parte da sua população jovem teve que migrar para outras cidades em busca de qualificação e trabalho e, se as oportunidades foram restritas para todos, imagine para grupos vulneráveis como os que envolvem a população LGBTQIAP+. 

A agente comunitária Karla Michelle foi uma das que precisou deixar a cidade ainda jovem para se qualificar como auxiliar de enfermagem, função que exerceu por quase 15 anos em uma instituição de saúde privada de outro município. A necessidade de voltar para São Rafael coincidiu com a abertura de concurso para agentes comunitários de saúde do município. "Comecei a ler sobre a função do ACS e vi a importância desse trabalho para ajudar a população. Os agentes nem percebem o seu papel, mas são fundamentais como educadores sociais e mediadores entre a população e o poder público", reflete.

O projeto

O projeto foi dividido em quatro etapas. Após conhecer a população LGBTQIAP+ residente no município e ouvir suas necessidades, veio a segunda fase, que resultou em uma parceria entre as secretarias de Saúde do estado e do município para sensibilizar e qualificar os profissionais de saúde em torno das especificidades desta população. Todos os servidores da Atenção Básica e do hospital municipal foram convidados para a qualificação, que contou com a participação de 34 profissionais.

Na terceira etapa, foi estabelecida uma unidade de saúde de referência e acolhimento dessa população. Voluntariamente, Karla virou interlocutora entre o público LGBTQIAP+ e a rede municipal de saúde nesta unidade. "Não é nosso lugar de fala, mas isso não nos tira a responsabilidade de lutar para defender os direitos deles", justifica. 

Ao buscarem o serviço, os usuários são encaminhados de acordo com suas necessidades para atendimentos com profissionais como dentistas, psicólogos, nutricionistas; fazem testes rápidos para doenças como Sífilis, HIV e Hepatites; recebem medicamentos, contraceptivos e são incluídos no Cartão Nacional de Saúde (CNS) com seu nome social.  

A população transexual foi uma das que mais procurou o serviço, o que levou a uma nova parceria com o estado na quarta etapa do projeto. Os usuários passaram a ser acompanhados pelo serviço estadual do ambulatório LGBTQIAP+, que funciona em Natal, para o acompanhamento da hormonioterapia. O transporte é garantido pelo município e nas primeiras consultas os usuários são acompanhados pela agente comunitária de saúde. Cerca de 32 pessoas já passaram pela unidade de referência do município, das quais cinco estão em estágio avançado de mudança de sexo. 

Geysa Kayonnara Fernandes é uma mulher transexual, que por vários anos tomou hormônios sem orientação profissional. Durante uma consulta de rotina no hospital de São Rafael, ela foi informada sobre a existência da unidade de referência do município, o que mudou sua vida. "Fazia hormonização sem acompanhamento e nunca vi resultado. A médica disse que pela quantidade de hormônio que eu tomava, poderia desenvolver até um câncer. Mas há um mês faço terapia hormonal sem medo no ambulatório de Natal, sabendo que estou sendo bem acompanhada", conta. 

Geysa já enfrentou situações comuns a quem vive um padrão de sexualidade dito não normativo. Foi expulsa de casa aos 16 anos, viveu na rua, se prostituiu, sentiu na pele os efeitos da violência e do abandono. Hoje, ela encontrou um modo de resistência onde silenciar ou reagir agressivamente não são suas estratégias de enfrentamento. "A gente sabe que o preconceito nunca vai deixar de existir. Vamos ter que estar sempre debatendo para que as pessoas abram mais a mente e compreendam que precisam nos respeitar". 

No ambulatório de Natal, que funciona no Centro de Doenças Tropicais, usuários transexuais recebem cuidado multiprofissional. Geysa já passou pelo atendimento médico, psicológico e de assistência social e no terceiro mês de tratamento deve voltar ao ambulatório para refazer os exames.

A experiência foi premiada na 18 Mostra Brasil, aqui tem SUS, do Conasems, o que causou surpresa e alegria para Karla, autora do projeto. "Um prêmio em um dos maiores congressos de saúde da América Latina foi uma conquista que nunca passou pela minha cabeça! Foi um trabalho muito despretensioso, sabendo que acolher e buscar soluções é o papel do profissional de saúde", comemora a ACS.