Guanhães - MG
Reportagem especial: projeto aborda letramento racial, combate ao racismo e saúde mental em Guanhães-MG
09/02/2024 16h09
No processo de colonização do estado de Minas Gerais, muitas regiões foram ocupadas por europeus em busca da exploração de pedras preciosas. Em Guanhães, município de aproximadamente 35 mil habitantes localizado no Vale do Rio Doce, dados oficiais revelam que os colonizadores dizimaram a população indígena da etnia Guanaã para conquistar o território e extrair diamantes e ouro.
No entanto, um aspecto da história oficial chama a atenção pela ausência. Embora 68% da população atualmente se autodeclare negra, segundo dados do IBGE, não há registro sobre a presença deles nos relatos originais. O dado reflete um dos inúmeros aspectos que revelam a intensidade do racismo estrutural na cidade e na região, onde a população negra é invisibilizada e os atos racistas são escamoteados.
A ausência de narrativas sobre os negros segue seu curso nas instituições e espaços públicos da cidade, onde a questão racial é pouco abordada, gerando, inclusive, um sentimento de auto negação por parte das próprias pessoas negras. A identificação deste problema, disparada por um ato de racismo dentro do Centro de Atenção Psicossocial de Guanhães (CAPS), gerou a inauguração, em março de 2023, do projeto "respeito inclui a cor", que vem movimentando a cidade em torno do tema, cuja tônica é o enfrentamento ao racismo e o cuidado em saúde mental.
"As histórias de racismo atravessam o sofrimento da nossa população desde a origem, quando naquele momento e ainda hoje as pessoas negras não são reconhecidas em sua história original e contribuições na construção dessa terra. Identificamos nos atendimentos individuais e coletivos no CAPS, cuja maioria dos pacientes são negros, o sofrimento relacionado à experiência de racismo", conta a psicóloca e psicanalista Liliane Maria Alberto da Silva. "Diante desta situação, convocamos toda rede de atores sociais, do poder público e da sociedade civil, para elaborarmos uma resposta institucional, formal, no sentido de construção de uma ação afirmativa que envolva a saúde mental", complementa.
O projeto se desenvolve por meio de encontros quinzenais no CAPS - e eventualmente em outras instituições -, envolvendo a presença de usuários, trabalhadores, familiares e pessoas interessadas, com o intuito de construir estratégias individuais e coletivas de afrocentramento, articulando letramento racial e cuidado em saúde mental. A metodologia tem duas abordagens: no primeiro encontro, os usuários são convocados a participar do processo de letramento racial, através da presença de convidados que possam contribuir com o debate sobre o tema do enfrentamento ao racismo em vários aspectos: direito, movimento negro, história da população negra no país, dentre outros. Os convidados representam vários segmentos da sociedade, seja no campo jurídico, acadêmico, da arte, como também entre pessoas que constituem a comunidade negra.
O segundo encontro do mês tem por propósito conversar sobre os temas debatidos na reunião anterior, pois as reflexões em torno da questão racial geram repercussões subjetivas. Dentre os efeitos observados pelos profissionais estão mudanças na posição subjetiva dos participantes, quando cada um vai se dando conta da sua negritude, da dificuldade de assumir sua identidade e do preconceito. Quem eu sou? O tempo de elaboração de possíveis respostas e construção da identidade é singular e deve ser respeitado.
"Um dos mecanismos de defesa contra o racismo é negá-lo, apagá-lo de modo individual e coletivo. Há grupos sociais que nos repelem e questionam a nossa atuação no campo institucional, mas temos o apoio da gestão e o marco legal do país de defesa da igualdade racial que nos ampara. A gente precisa acolher cada indivíduo, para que faça o seu processo de reconhecimento, e impulsionar o movimento coletivo. Como no bordado, é um ponto lá e um ponto cá", reflete Liliane.
Autoreconhecimento
"Eu já sofria racismo e não sabia. Descobri que sofria e que estava praticando racismo também". A constatação é de João Paulo, um rapaz negro, com pouco mais de 40 anos, que frequenta o CAPS desde 2009. João Paulo recorda que só muito tempo depois foi perceber o motivo pelo qual sempre que chegava um caminhão novo na empresa em que trabalhava como motorista, ele era "jogado" para o caminhão mais velho. "E não era porque eu fosse ruim, porque nunca ralei um caminhão". Os novos veículos iam para as mãos de motoristas menos experientes, mas de pele clara.
Os sintomas de depressão e ansiedade, que vinha desenvolvendo, se acentuaram em outra empresa após um acidente no caminhão em que dirigia. A memória de João Paulo às vezes falha e ele pede ajuda para retomar a narrativa, que entre uma lembrança e outra, vem atravessada pela emoção. O episódio mais doloroso veio após o acidente, quando perdeu a função de motorista e passou a ser auxiliar. "Uma vez, eu estava limpando o pátio com o carrinho de mão e um cara, motorista do caminhão que eu dirigia antes, disse: - 'Tira essa carreta daí que quero estacionar meu caminhão'. Eu não podia chorar porque a zoação seria grande, mas foi uma situação que eu não esqueço por nada".
O projeto tem gerado um amplo movimento em torno da valorização do povo negro. Nesse direção, foi realizado o primeiro Festival de Cultura e Consciência Negra de Guanhães, com a presença de artistas negros, maracatu, mulheres tambozeiras, rappers, quilombolas, para afirmar a presença do corpo negro e da cultura negra no município. O grupo do CAPS também participou de um concurso estadual de samba enredo Antimanicomial, com o título "Filhos da primavera", abordando a questão antirracista e antimaniconial. Ganharam o segundo lugar. Os efeitos desse movimento têm sido plurais em formas e dimensões.
Na esteira desse processo, em 2023 foi criado, na Secretaria Municipal de Cultura, o Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial. O secretário Flávio Roberto dos Reis é a primeira pessoa negra a ocupar o cargo na história do município.
Antônio Geraldo de Jesus, 43 anos, é conselheiro tutelar do município e integra o projeto "respeito inclui a cor". Para ele, o letramento racial tem sido importante para entender o que machuca a população negra. "Já fui atravessado várias vezes pelo racismo. Meu pai era negro e meus tataravós, com certeza, eram escravos. Passei por várias situações em que não identificava esse racismo brando, que nos atravessa no dia a dia e compromete o equilíbrio psicológico. O grupo é muito importante para a nossa cidade porque nunca se debateu o racismo antes".
No Conselho Tutelar, Antônio observa como a questão racial atinge 99% das famílias acompanhadas, cujas repercussões são a violência e o abandono. "Às vezes, a gente não tem tempo nem de pensar sobre isso e acaba adoecendo sem identificar o porquê", desabafa.
O projeto tem possibilitado aos usuários e profissionais do CAPS mudanças na compreensão do lugar social do negro, dos seus direitos como usuários, do reconhecimento sobre o que é racismo. "Nós estamos entendendo de que modo essas muitas maneiras de racismo calam, estigmatizam e violentam seus modos de vida e que é preciso encontrar novos caminhos, pois não abriremos mão desses direitos, que compõem a natureza da própria democracia brasileira", enfatiza Liliane.