Uma das características marcantes de muitos profissionais que atuam no Sistema Único de Saúde (SUS) é a capacidade de adaptação às condições mais adversas para garantir o direito à saúde, considerando contextos de grande extensão territorial e intensa desigualdade social. A experiência de São Braz do Piauí, pequeno município de 4 mil habitantes, demonstra essa realidade. Lá não há abastecimento de água encanada e boa parte da população se utiliza de cisternas para o consumo familiar.

Nesse cenário, o trabalho de saúde bucal nas escolas e creches da rede municipal, onde a água é escassa até para lavar as mãos, estava seriamente comprometido. Até surgir uma iniciativa inovadora desenvolvida pela cirurgiã dentista Lidineide da Rocha Silva, que atua em uma das duas equipes de saúde bucal de São Braz do Piauí.

Ela conta que no trabalho de visitação às escolas, a equipe utilizava manequins para demonstrar a escovação correta e falar sobre a importância da alimentação saudável. Embora fossem distribuídas escovas de dente entre os alunos, não era possível pôr as crianças para desenvolver a prática adequada de escovação supervisionada porque não havia água.

As profissionais constataram a existência de manchas brancas nos dentes de mais de 80% das crianças, o que indicava a presença ativa de um tipo de cárie que pode ser eliminado apenas com a aplicação tópica do flúor. Mas sem água, esse trabalho também estava inviabilizado.

As dificuldades estruturais do município levaram à construção de um escovódromo, que se caracteriza por uma estrutura feita com material reciclável, onde foram acopladas duas pias e galões de água. O material é bem leve, fácil de montar, desmontar e acomodar no carro. 

O projeto funciona assim:

Quando chegam às comunidades, a cirurgiã dentista e a auxiliar de saúde bucal pedem água da cisterna aos moradores para encher o galão. A água limpa permite realizar a escovação e aplicar o flúor, o que tem possibilitado uma redução significativa na cárie infantil no município.

"A ideia surgiu a partir de uma certa indignação nossa. A pergunta era: o que fazer para mudar essa realidade? Um dia eu avistei um expositor de lâmpadas que ia para o lixo. Ele se tornou a base do escovódromo. Adaptamos pias na grade de metal, furamos um galão e as únicas peças que mandamos confeccionar foi uma mesa de apoio e um espelho para que as crianças pudessem se ver e criar o hábito da escovação, que a população em geral não tem", explica Lidineide.

A estrutura de metal que serviu de base para o instrumento estava abandonada em um mercado de materiais de construção, entre os objetos descartáveis. Graças à capacidade inventiva da cirurgiã dentista, o projeto pôde ser realizado. Lidineide credencia a sua criatividade ao talento do pai, que ficou cego aos 21 anos e desenvolveu grande habilidade manual, construindo objetos, tocando sanfona e administrando sozinho um comércio que ele mesmo iniciou.

A técnica de enfermagem Jaiane Aparecida das Chagas Dias tem um filho de 10 anos e uma filha de 7 anos que estudam nas escolas da rede municipal de ensino. Segundo a mãe, eles aprenderam a escovação correta através do projeto de saúde bucal nas escolas. Jaiane reconhece a importância da iniciativa na educação dos filhos. "O escovódromo ajudou muito, principalmente as crianças do interior que não eram instruídas quanto à saúde bucal. Como ele é móvel, a equipe fica circulando, ensinando a fazer a escovação correta", reforça a técnica de enfermagem.

Ação comunitária

São Braz do Piauí possui duas creches, cinco escolas de educação infantil e duas unidades básicas de saúde. A população vive sobretudo da agricultura e o município é formado por muitos povoados. 

O trabalho de visita às escolas acontece periodicamente, mediante cronograma agendado com os profissionais da educação. Mas a equipe odontológica percebeu que precisava desenvolver vínculo com as famílias e por isso as visitas passaram a acontecer também nas comunidades.

O objetivo era melhorar a conscientização sobre os cuidados preventivos para manter a saúde bucal, modificando aquela realidade. Essas visitas acontecem periodicamente, vinculadas a uma ação social mais ampla, que envolve um trabalho intersetorial.

"Eu fiquei muito feliz ao escrever o trabalho na Mostra estadual, por registrar algo que realizamos e que fez a diferença no meu município. Com a premiação, tive a certeza de que é algo inovador e que estamos no caminho certo. Espero que os profissionais não se acomodem com a realidade imposta porque as pessoas precisam de nós. Temos que sair um pouco do espaço entre quatro paredes, diminuir o curativo e ir para o preventivo, evitando muitos problemas e diminuindo os custos", reflete a cirurgiã dentista.

A relevância do projeto é reforçada por Jaiane, que acompanhou de perto a evolução dos filhos. "Eu acredito que a saúde bucal é importante para o futuro de uma criança e o projeto contribui muito com isso, fazendo toda diferença na vida dos jovens". Como resultado, a partir do exame clínico feito nos alunos após a aplicação do flúor, observou-se a redução total das manchas brancas, o que indica o sucesso da experiência.

Experiência premiada na 18ª Mostra Brasil, aqui tem SUS.