Boca do Acre - AM
Boca do Acre presta assistências às famílias ilhadas pelas enchentes
20/02/2025 09h19
Por Giovana de Paula
O chão de terra molhada, bem chovida da noite anterior, exigiu mais tempo no trajeto entre a Unidade Básica de Saúde Francisca Amélia e a casa de seu Evandro. A marca d´água na cerca era indício do alagamento, um dos grandes desafios para quem cuida da saúde pública em Boca do Acre, no estado do Amazonas. O enfermeiro Silvio Costa, nascido e criado no município, conhece bem essa realidade e enfrenta as cheias com a determinação e também o afeto de quem reconhece o movimento das águas e o perfil dos moradores. Muitos deles o viram crescer e hoje se beneficiam de seu atendimento humanizado.
Ele retorna à casa de seu Evandro, dessa vez como intérprete, mediando nossa conversa - seu depoimento como usuário do SUS, que se viu ilhado na cheia severa de 2023. Evandro Barbosa Mororo é cadeirante e tem dificuldade de falar em função de um Acidente Vascular Cerebral, mas firma a voz quando é para agradecer aos profissionais da saúde. Sentiu o cuidado e o amparo dos que fazem o SUS quando, na cheia de 2023, ficou ilhado por muitos dias.
As adversidades foram minimizadas diante do esquema de Atendimento Domiciliar montado em meio às enchentes severas de 2023, uma estratégia essencial para garantir saúde às comunidades afetadas em Boca do Acre. O município está situado às margens dos rios Acre e Purus e enfrenta enchentes recorrentes. No último período de grande cheia, a UBS Francisca Amélia viu cerca de 80% da área adstrita inundada, afetando cerca de 6.200 pessoas. Para prestar assistência às comunidades afetadas, a Atenção Primária à Saúde (APS) reorganizou suas atividades, priorizando o atendimento domiciliar.
Canoas e voadeiras passaram a ser meios de transporte para levar atendimento e suprimentos a quem se viu ilhado. Mas antes que as águas chegassem, veio um processo de organização que começou com a territorialização, um primeiro passo essencial para a médica da UBS, a acreana Anna Beatriz Chagas Freitas, que chegou naquele ano no município e, portanto, não conhecia a dinâmica das chuvas. Durante os seis primeiros meses de trabalho, foi realizada a territorialização, a definição das equipes e o mapeamento da população de maior risco.
Atendimento emergencial
O período da vazante já é rotina para os moradores da região, mas é preciso se preparar para as intercorrências. Divididas em duas equipes, uma foi deslocada para a UBS fluvial e a outra ficou em terra. As urgências vieram: os profissionais realizaram atendimento médico para diarreia, desidratação, pneumonia, asma, diabete descompensada, lesões, infecções, insegurança alimentar e outras emergências. Levaram medicamentos e vacinaram grupos vulneráveis, além de estabelecer parceria com outros órgãos como Bombeiros e a Defesa Civil, para o suprimento de alimentos e água potável. Os profissionais se revezavam em escalas pré-definidas e se dividiam no atendimento fluvial, em deslocamentos e dentro da UBS.
Para superar as dificuldades de acesso, foram utilizados aplicativos de mensagens e o uso de barcos e canoas para transporte de profissionais e suprimentos. O atendimento domiciliar envolveu prioritariamente, além das emergências, pacientes já em acompanhamento como pré-natal de alto risco, hipertensos e outros já pré-agendados. A comunicação se dava através do contato com o Agente Comunitário de Saúde, via whatsapp ou presencialmente. Diante da necessidade (visita, falta de insumo ou urgências), a equipe se organizava de acordo com a demanda.
Cuidado territorial ampliado
Criada em 2023, a estratégia se tornou contínua e repercute no fortalecimento do vínculo entre as equipes e a comunidade. Seu Evandro lembra nitidamente quando a equipe chegou para socorrê-lo de um soluço que não passava em muitos dias, em razão de sua diabete e outros parâmetros descompensados, e o quanto se sentiu acolhido e cuidado com a presença da médica e dos enfermeiros.
Entre as ações planejadas, a equipe promoveu também educação em saúde para identificação de animais peçonhentos, sinais e sintomas das principais doenças infectocontagiosas e risco de consumo de água contaminada, além dos cuidados com a limpeza e a necessidade do uso de EPIs. Fizeram ainda acolhimento em saúde mental, identificaram pessoas isoladas e deram acesso a alimentos, água para consumo, insumos e medicamentos. No total, 359 atendimentos foram realizados, tratando de condições como pneumonia, dengue, crises hipertensivas e desidratação. As ações foram eficazes, evitando internações e, felizmente, nenhum óbito foi registrado.
Dra. Anna Beatriz não atua mais na UBS Francisca Amélia, mas agradece à equipe pelo empenho. “Foi impactante ver a realidade antes e depois da enchente: das ruas movimentadas e alegres ao silêncio doloroso dos caminhos de canoa. Encontrar pessoas isoladas, tristes e sem alimentação adequada me marcou”, relata. Ela destaca a resiliência da população, que se adapta e mantém viva sua cultura mesmo nas adversidades. “O trabalho humanizado e a escuta qualificada foram essenciais. O retorno da comunidade, poder aliviar e acolher, foi o maior prêmio.”'
Para o Secretário de Saúde de Boca do Acre, Manuel Barbosa de Lima, o reconhecimento da experiência exitosa é fruto do trabalho dedicado da equipe. “Como gestor da pasta da saúde do município, fiquei muito feliz com a premiação no Congresso do Conasems. Isso mostra um pouco do trabalho e dedicação da nossa equipe da APS nos atendimentos domiciliares durante a enchente. Mesmo diante de todas as dificuldades, a equipe não deixou de prestar atendimento e apoio às famílias afetadas. Parabenizo o Conasems pelo espaço e pelo belíssimo trabalho com as experiências exitosas, mostrando na prática o SUS que dá certo”.
O enfermeiro Silvio sorri, porque sabe o que é ser parte da comunidade e aliviar a dor dos seus, mesmo que para isso tenha que enfrentar o clima, animais peçonhentos, água cobrindo o corpo. Em troca, o abraço de seu Evandro.