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Vacinação em massa no Complexo da Maré: promoção da equidade no SUS


17/09/2021 10h21 - Atualizada em 17/09/2021 10h21

O Complexo da Maré, localizado na zona norte do Rio de Janeiro, reúne 140 mil pessoas que se dividem em 16 comunidades. Esse contingente populacional ultrapassa a densidade demográfica de 96% dos municípios brasileiros. Imagine o impacto da Covid-19 sobre os moradores da Maré – considerando que as regras de isolamento social passam ao largo de um território super povoado e marcado por vulnerabilidades – não fosse a atuação de entidades como a Redes da Maré e a parceria com instituições públicas como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O esforço coletivo resultou em um projeto que possibilitou a vacinação em massa da população acima de 18 anos que ainda não havia sido imunizada.

Quando a pandemia ancorou no Brasil, em março de 2020, a Redes da Maré direcionou suas atividades à campanha “A Maré diz não ao coronavírus”. A primeira iniciativa foi oferecer proteção social aos moradores mais fragilizados, garantindo recursos para cestas básicas, editais para artistas, geração de emprego e renda para profissionais como costureiras e cozinheiras. Diante do aumento das necessidades de cuidado em saúde, a organização social montou com a Fiocruz o projeto denominado Conexão Saúde, que reuniu outras quatro instituições: Dados do Bem, SAS Brasil, União Rio e Cruz Vermelha. O objetivo central do trabalho foi testar, rastrear contatos, acompanhar via plataforma de telemedicina e promover o distanciamento social, criando as condições de possibilidade para que as pessoas pudessem se manter isoladas em casa de forma segura.

 

 

Até hoje, a população diagnosticada com a doença recebe material de higiene e proteção, alimentos já preparados e acompanhamento quase diário via telemedicina para impedir a propagação da doença. Em um galpão da Redes da Maré foi montado um Centro de Testagem e Acolhimento, que a população acessa por três caminhos – através da articulação com as unidades de saúde por meio do trabalho dos agentes comunitários de saúde, via aplicativo ou mediante agendamento direto no Centro. “Talvez o mais importante do Conexão Saúde foi contribuir para que os moradores parassem de morrer por Covid-19 na Maré. Sem dúvida a vacinação em massa vai preservar vidas. O projeto também possibilitou que uma favela carioca falasse sobre êxito, com uma visibilidade muito positiva sobre a potência desse lugar”, avalia a assistente social, integrante da Redes da Maré e coordenadora do Conexão Saúde, Luna Escorel Arouca.

Uma ampla rede de comunicação foi montada e revelou a capacidade de engajamento e articulação política da juventude das comunidades da Maré. Nos primeiros dez meses após a implantação do projeto, antes do impacto da vacinação, o número de testagem subiu 140% e a letalidade caiu 60%. Atualmente, o índice de mortalidade por Covid-19 foi reduzido em mais de 80%. “É importante dizer que no início da pandemia morria na Maré o dobro de pessoas acometidas por Covid-19 no Rio de Janeiro, um estado que já contabilizava o dobro de mortes em relação à média nacional”, afirma o médico-sanitarista e coordenador de relações interinstitucionais da Fiocruz, Valcler Rangel Fernandes, que faz parte da coordenação do projeto.

 

Vacinação

Com muitas informações coletadas e um amplo espectro de intervenções visando proteger a população, a Fiocruz propôs a realização de uma pesquisa a partir da experiência no território. Daí surge com os parceiros o projeto de avaliação da efetividade da vacinação em massa da população adulta da Maré, visando verificar, dentre outros aspectos, a circulação de variantes e a proteção indireta de crianças e adolescentes. O estudo irá acompanhar por seis meses o comportamento do imunizante em duas mil famílias, o que corresponde a oito mil moradores. “A gente quer que os dados produzidos e gerados possam consolidar informações que permitam um planejamento em saúde no território. Depois da pandemia, qual o impacto sobre a saúde pública? Queremos criar um modelo de vigilância em saúde na Maré que possa inspirar outras comunidades”, defende Luna Escorel.

As vacinas são disponibilizadas a partir do que os pesquisadores chamam de sobras de produção da Fiocruz, responsável por produzir a AstraZeneca no Brasil, mediante acordo com a Política Nacional de Imunização (PNI). O alvo da campanha foram jovens de 18 a 33 anos que ainda não haviam entrado na lista de vacinação do município, o que representa cerca de 31 mil pessoas. No entanto, o projeto contemplou em apenas seis dias – de 29 de julho a 3 de agosto – quase 37 mil moradores da Maré, ao incluir as pessoas que por algum motivo perderam a primeira dose.

Só foi possível atingir uma meta tão avançada porque se juntaram ao poder público muitas pessoas comprometidas em ajudar. A força tarefa de imunização contou com a presença de 1.620 voluntários, entre moradores da comunidade, educadores e profissionais de saúde. “Centenas de jovens ocuparam as ruas para pré-cadastrar quem não tinha cadastro nas Unidades de Saúde da Família. Em duas semanas realizamos uma campanha maciça de comunicação e saímos na favela inteira com tabletes na mão para incluir os moradores na campanha. Usamos megafone, lambe, carro de som, cartazes, redes sociais e nos reunimos com centenas de comunicadores populares”, descreve o coordenador da Fiocruz.

 

A rede de saúde municipal

No Complexo da Maré existem sete unidades básicas de saúde e 100% de cobertura da Estratégia Saúde da Família, de acordo com o coordenador da Atenção Primária da Área Programática 3.1 do Rio de Janeiro, Thiago Wendel Gonzaga. Para imunizar a população, a Secretaria Municipal de Saúde montou uma operação envolvendo 130 pontos de vacinação, com a participação de cinco associações de moradores, 15 escolas municipais da região e a Vila Olímpica. Em média nove mil pessoas foram vacinadas por dia. “Todo esse trabalho só foi possível através da parceria com a Fiocruz e a Redes da Maré. O meu desejo era conseguir mais doses e estender a vacinação a outras comunidades como o Complexo do Alemão e Manguinhos”, afirma Thiago.

A área coordenada por Thiago Wendel é responsável por assegurar a atenção à saúde de bairros da zona norte do Rio de Janeiro, reconhecidos pelo baixo índice de desenvolvimento social. A Secretaria de Saúde tem investido em três frentes para conter a pandemia na região: oportunizar a vacinação; testar para diagnosticar precocemente e bloquear a transmissão; além de cuidar das pessoas de forma mais equânime, com equipes de saúde da família monitorando os casos. Enfermeiro da Estratégia Saúde da Família desde 2012, Thiago, que já trabalhou em outras comunidades no Caju e no Catumbi, sabe bem de onde fala. “Sou morador do Complexo do Alemão. Fazer parte dessa história tem sido incrível, porque a resposta da favela veio de um favelado. Meu trabalho como enfermeiro, todos os dias, é tentar diminuir as iniquidades que eu vivi. Participar desse movimento de preservação de vidas traz a sensação de que cada um que eu cuido poderia ser meu pai, meu avô”.

 

O Complexo da Maré

Não é possível traçar um perfil homogêneo da população residente na Maré. A maioria sobrevive do trabalho informal, necessita de transportes coletivos para se locomover, divide o espaço de moradia com muitos membros da família. Entre as comunidades observa-se realidades distintas, que refletem um processo de urbanização irregular, onde alguns vivem em palafitas, em bolsões de miséria, e outros em pequenos prédios construídos por políticas de moradia, onde há praças, restaurantes.

Talvez o que unifique essa população seja um modo de se organizar mediado pelo cooperativismo. “As pessoas sobrevivem porque se apoiam umas nas outras. É o completo oposto da meritocracia. A realidade é complexa e expõe o desafio do isolamento social porque os moradores da Maré se organizam coletivamente, em um contexto onde as crianças, por exemplo, deixam de ir para as escolas mas se mantêm nas praças”, reflete Luna Escorel Arouca.

A Redes da Maré foi criada há 20 anos por moradores que cursavam o ensino superior e queriam que esse direito fosse estendido a mais pessoas. Geograficamente situados entre a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Fiocruz, os jovens da Maré têm pouco acesso ao espaço universitário. A organização atualmente trabalha com quatro eixos centrais: segurança pública, arte e cultura, educação e desenvolvimento territorial. Ao longo do tempo, o grupo foi se multiplicando, com o apoio de organizações nacionais e internacionais. “Enquanto movimento da sociedade civil organizada, a gente entende que o nosso papel é chamar os entes públicos para se fazerem presentes e trabalhar em conjunto com os moradores e lideranças locais. A gente tem que pensar a participação a partir de múltiplos formatos. É a ciência pisando no território da favela”, afirma Luna.

As articulações em torno do enfrentamento da Covid-19 no Complexo da Maré talvez tenham resultado na experiência de maior integração entre entes públicos e sociedade civil ocorrida até hoje na comunidade. E promete manter a continuidade através de outras ações, como projetos ambientais para reduzir a grave poluição do ar sentida pelos moradores. “As últimas vezes que estive na Maré foi para discutir violência, me reunir com mães que perderam filhos, intervir em uma ação policial que disparava tiros sobre um helicóptero. Mas agora estamos lá há um ano para discutir saúde e com uma potência da juventude que eu fiquei impressionado. A vacinação foi o auge do processo, mas o que mais me encantou foi vivenciar o SUS na veia através de um trabalho que reuniu poder público, sociedade civil e ciência. Essa foi a experiência mais fantástica que eu já vivi em todos esses anos de atuação no SUS”, conclui Valcler Rangel.

 

Reportagem: Giovana de Paula – colaboradora externa do Conasems