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Rede de Saúde Mental de Maringá investe na mudança do modelo de atenção


17/12/2021 13h28 - Atualizada em 17/12/2021 13h28

A reforma psiquiátrica no Brasil teve como uma de suas grandes bandeiras a luta antimanicomial, com o objetivo de romper com a cultura da hospitalização e da adoção de tratamentos desumanizantes. Maringá, a terceira maior cidade do estado do Paraná, com aproximadamente 437 mil habitantes, iniciou há mais de 20 anos um amplo processo de reestruturação da sua rede de saúde mental, que teve como um dos resultados a diminuição das internações psiquiátricas. Com o surgimento da pandemia e consequentemente a mudança no perfil de atendimento em saúde mental, as equipes se reorganizaram, criando estratégias que vão desde a implantação de ferramentas de atendimento online à formação de grupos de apoio às pessoas enlutadas pela COVID-19.

Como resposta imediata à pandemia, segundo a gerente de Saúde Mental e psicóloga Maria Heloisa Cella, foi criado o plantão psicológico, onde todos os psicólogos da rede de Atenção Básica se revezavam para atender de segunda a segunda, das sete da manhã a uma hora da madrugada, além de serem instituídos o telemonitoramento e o teleatendimento. “A gente teve que achar ferramentas tecnológicas para continuar o trabalho, considerando que, via de regra, as pessoas têm acesso ao celular. Após um ano de funcionamento, desmontamos o plantão psicológico, mas incorporamos a tecnologia às nossas ações. A maior parte das reuniões, por exemplo, ocorrem de forma remota e isto otimiza bastante o tempo”, exemplifica o psicólogo da Unidade Básica de Saúde (UBS) Alvorada, Leandro Carmo de Souza.

No período de maior incidência dos casos de Covid, os relatórios que chegavam às Unidade Básica de Saúde, vindos da Vigilância Epidemiológica, evidenciavam o significativo número de óbitos de moradores vítimas da doença. A preocupação em acolher as demandas de saúde das famílias enlutadas gerou novas estratégias de atenção, sobretudo através da formação de rodas de conversa e grupos de apoio mútuo. A presença dos agentes comunitários de saúde (ACS) no território possibilitou a identificação dessas famílias para a construção de um plano de cuidado. “Infelizmente, passou a ser muito recorrente a presença de pessoas que perderam seus familiares pelo coronavírus, uma morte violenta e repentina. Sensibilizamos as equipes de saúde quanto aos sofrimentos causados pela doença – como o luto, a depressão e a ansiedade – e estamos muito atentos aos impactos da pandemia junto à população”, conta o psicólogo Leandro.

O modelo de organização da saúde mental, em desenvolvimento há mais de duas décadas no município, garantiu a integralidade do cuidado dos usuários no contexto de emergência sanitária. Ao procurar a UBS com distúrbios psicológicos, o cidadão passa a ser acompanhado pelo psicólogo e por outros profissionais da Atenção Básica. Para casos que exigem a presença de um psiquiatra, o município mantém três polos de saúde mental e uma policlínica, como também estruturou Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e uma Emergência Psiquiátrica para suprir a necessidade de atendimento em situações mais graves.

O aumento da demanda de saúde mental em consequência da COVID-19 é observado por Leandro como reflexo também da ausência de suporte de outras políticas. O fechamento de espaços culturais e esportivos, de escolas e comércio, não só contribuíram para o desenvolvimento de quadros de ansiedade e depressão, como provocaram a regressão de pacientes estabilizados. Com a pandemia, os CAPS do município se mantiveram de portas abertas, mas o medo da contaminação fez a presença dos usuários diminuir. “Criamos então um mecanismo de visita domiciliar aos pacientes, em que os profissionais atendiam no portão, sem entrar nas casas, levando medicação, atividades e reforçando o dia da consulta. A diminuição dos atendimentos presenciais, no entanto, causou o aumento do número de pessoas em crise, o que elevou os encaminhamentos ao CAPS III e à emergência”, diz a gerente da Saúde Mental do município, Maria Heloisa Cella.

Histórico

Quando a reestruturação da atenção psicossocial se iniciou em Maringá, o município mantinha um hospital psiquiátrico com 360 leitos e era referência em saúde mental para várias regionais do Estado, o que correspondia a cerca de um milhão e 600 mil habitantes na sua área de abrangência. Para inverter o modelo manicomial, foram criados serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos, como quatro Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e três residências terapêuticas. Uma comissão de desinstitucionalização foi criada e 64 moradores do hospital psiquiátrico da cidade voltaram a viver com suas famílias ou nas residências terapêuticas. “Esta comissão se manteve com a função de acompanhar e detectar internações de longa duração, avaliando os casos sugestivos de abandono no hospital e dando os devidos encaminhamentos.  Conforme fomos criando serviços, reduzimos as internações”, atesta Maria Heloisa Cella.

Uma das ações mais importantes foi a criação do serviço de emergência psiquiátrica, em 2001, com quatro leitos de observação e 16 leitos de internação, cujo objetivo é regular todo fluxo de atendimento dos pacientes em estado grave, o que facilitou muito a organização da rede. A emergência funciona no setor de psiquiatria do Hospital Municipal de Maringá. Os pacientes são atendidos por uma equipe multidisciplinar, formada por assistente social, terapeuta ocupacional, psiquiatra, psicólogo, enfermeiros e técnicos de enfermagem. “Cada usuário é acompanhado por um médico de referência e na Psicologia agendamos conforme a necessidade, buscando aproximação com as famílias, que nos ajudam a progredir no processo de cuidado”, afirma a psicóloga da Emergência, Rita de Cássia Solteiro. Ao longo dos anos houve a necessidade de ampliação dos leitos do serviço de Emergência Psiquiátrica, passando para 26 leitos de internação em hospital geral e 4 leitos de observação.

A mudança no modelo de atenção também passa pela formação dos futuros profissionais de saúde. No hospital geral se desenvolve a Residência Multiprofissional de Urgência e Emergência, ligada à Universidade Estadual de Maringá, por onde ingressaram sete turmas de alunos. “Há uma cultura muito complicada em torno do modelo manicomial e estamos buscando uma atenção que não seja só voltada ao tratamento medicamentoso. Envolve o cuidado mais ampliado para observar o contexto do paciente e intervir sobre ele”, afirma Rita, também preceptora da Residência. A experiência demonstra que modificar parâmetros de atenção à saúde mental requer sensibilidade, persistência e conexão em rede.