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Diálogo aberto: o envolvimento da família e amigos no cuidado da saúde mental em Carmo do Cajuru-MG


30/12/2021 10h50 - Atualizada em 30/12/2021 10h50

No Centro de Atenção Psicossocial (CAPS I) do pequeno município mineiro de Carmo do Cajuru, cuja população gira em torno de 22 mil habitantes, as equipes de saúde mental criaram novas estratégias de cuidado em meio ao contexto desfavorável da pandemia. Através de um método denominado Diálogo Aberto, outras possibilidades de olhar o paciente com transtorno psíquico foram sendo desenhadas, envolvendo a redução do uso excessivo de medicamentos, a interação com as famílias e rede social da pessoa, o empoderamento de ex-usuários, com formação de suportes interpares, e a desconstrução de estereótipos.

Desenvolvido a partir dos anos de 1980 na Finlândia, por Jaakko Seikkula, o Diálogo Aberto busca manejar e compreender a manifestação inicial de uma crise psicótica, através da intervenção nas primeiras 24 horas. O trabalho se desenvolve na chamada reunião terapêutica, onde juntam-se ao usuário, na sua casa ou em outro ambiente de sua escolha, pelo menos dois profissionais, familiares e amigos próximos, tendo como eixo estruturante o diálogo. Thiago Magela Ramos, enfermeiro e coordenador do CAPS há 3 anos, conta que teve contato com o método em uma das lives que participou durante a pandemia. No encontro, falava-se sobre o livro “Anatomia de uma Epidemia”, do jornalista Robert Whitaker, cuja abordagem central traz uma crítica à evolução do uso da medicação psiquiátrica e suas consequências.

O método tem uma ação incisiva sobre o modelo medicamentoso adotado pela saúde mental em muitos países. “Trabalhamos com o princípio da tolerância à incerteza, que diz sobre a nossa capacidade de esperar para ver se o paciente vai se organizar ou não sem a intervenção medicamentosa”, afirma Thiago. Mesmo que haja a necessidade de prescrição de remédios, o usuário terá acesso reduzido, sem sua disponibilização inicial a longo prazo. O resultado da experiência tem se traduzido em indicadores positivos: do dia 1 de janeiro de 2021 – quando o trabalho foi implementado – até 16 de novembro, 25 pessoas tiveram a primeira crise psiquiátrica, das quais 14 delas receberam alta sem uso de medicamento e seis usaram medicação em baixas dosagens, que depois foram descontinuadas com o devido acompanhamento médico.

Os profissionais compreendem a crise psicótica como uma ruptura na linguagem, onde algo dentro da pessoa a impele a se expressar de forma delirante. No entanto, ela não perde a capacidade de decisão. No momento em que todos sentam para conversar e expressam simbolicamente o que pensam e sentem, a partir do que foi ouvido, o usuário vai encontrando caminhos de reorganização.  Além de dar tempo ao paciente, a ênfase do Diálogo Aberto está no compartilhamento das resoluções. “Em um dado momento, eu e outro profissional falamos sobre o caso na presença de todos. As condutas – que envolvem por exemplo a realização de internações, o uso de medicação e o encaminhamento ao CAPS –  são tomadas em conjunto”, explica o coordenador. O número de visitas também é definido em grupo, dependendo do nível de urgência de cada caso.

Thiago Ramos, que já trabalhou em hospital psiquiátrico, não acredita em saúde mental sem o envolvimento da família. A equipe aposta na psicoeducação familiar, com o objetivo de ensinar ao paciente e aos acompanhantes sobre a patologia e seu tratamento. “Como são contextos de muita vulnerabilidade social, o desafio é unir os parentes para conversar sobre a situação do usuário, mas quando isso acontece os efeitos são espetaculares”, conta.

 

 

Oficina coletiva de artesanato como parte do tratamento psicológico

 

Outras abordagens

A equipe do CAPS é composta por nove profissionais, que se desdobram para mudar o perfil de atendimento voltado à psiquiatria. Através de um processo de educação continuada, a cada semana um funcionário é responsável pela capacitação dos demais, seja ele da equipe médica, da administração ou da limpeza. Foi criado um grupo de estudos em torno da metodologia do Diálogo Aberto, que resultou na adoção de outras práticas inovadoras de cuidado. “Há um ano estamos estudando sobre abordagens de saúde mental que trazem muito mais a lógica humanizada. É fantástico o resultado e o apoio de toda a equipe”, diz a psicóloga do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) da Unidade Básica de Saúde (UBS) Bonfim e referência técnica em Saúde Mental do município, Cassiana Martiléia Rodrigues.

Um dos resultados da experiência foi a criação do grupo de ouvidores de vozes, que consiste em um espaço de ajuda mútua onde os usuários que apresentam esses sintomas são estimulados, em rodas de conversa, a reconhecer e caracterizar as vozes que escutam. O trabalho começou em outubro de 2020 e permanece com encontros quinzenais. “Fomos em um seminário de novas abordagens em saúde mental onde foi apresentada a experiência do grupo de ouvidores de vozes, cujo enfoque não é retirar a voz da pessoa ou torná-la inválida pelo uso excessivo de medicação, mas ajudá-la a conviver com os sintomas”, conta Thiago.

Outra abordagem envolve o empoderamento de pessoas que passaram por tratamento em saúde mental, através de um projeto denominado Suporte Interpares. Egressas do CAPS, elas são capacitadas para desenvolverem apoio nos territórios, conversando com quem está passando pela mesma situação, acompanhando ao serviço de saúde ou mesmo ajudando nas situações de crise que se desencadeiam no bairro até chegar ajuda profissional. Das oito pessoas que ingressaram no curso, quatro se formaram e o desafio da gestão agora é conseguir bolsa para remunerá-las pelo trabalho.

Considerando que a organização do trabalho em Saúde Mental se dá em rede, a política de redução do uso excessivo de medicamentos psiquiátricos alcançou as UBS. Nesse sentido, foi desenvolvido um protocolo de desprescrição de benzodiazepínicos e antidepressivos, a partir do qual todos os médicos e psicólogos das UBS foram capacitados. Uma das consequências foi a redução significativa da dependência em alguns dos pacientes que tomavam esses remédios há 30 ou 40 anos. Hoje, eles usam de forma pontual ou atípica.

 

Atividades ao ar livre e em conjunto fortalecem a rede de Saúde Mental de Camro do Cajuru – MG 

 

Pandemia

A exemplo de outros municípios do país, em Carmo do Cajuru houve no último ano um grande aumento da demanda de atendimento em decorrência de transtornos de ansiedade, fobia, síndrome do pânico, tentativa de suicídio e sintomas depressivos. “São sintomas naturais diante de uma situação anormal, por isso tivemos o cuidado de não patologizar e medicalizar. São dificuldades que a gente acha que vai passar e como estratégia de apoio desenvolvemos um trabalho terapêutico por contato telefônico, on line, e visitas domiciliares”, avalia Cassiana.

“Essa experiência nos coloca diante de nossas vulnerabilidades, mas também nos traz resultados positivos. Com o aumento da demanda individual, nosso desafio é tornar a psicologia mais coletiva. A pandemia nos trouxe a possibilidade de criar outras estratégias que não se desenvolvam apenas dentro das unidades, mas se expandam através de ações virtuais”, conclui a psicóloga. O trabalho desenvolvido em Carmo da Cajuru revela uma tendência nacional, no âmbito do SUS, de aceleramento da incorporação de tecnologias nos serviços de saúde, uma necessidade antiga que se fez urgente diante da maior crise sanitária atravessada pelo país.

 

Reportagem: Giovana de Paula – colaboradora externa do Conasems