Suzano - SP
Município de Suzano-SP cria política de proteção às pessoas vítimas de violência doméstica e sexual
03/03/2023 17h12
Quando uma mulher vítima de violência chega a uma unidade de saúde, o que deve ser feito? Ela é tratada de acordo com suas necessidades físicas e emocionais? É acompanhada na rede de saúde e encaminhada a outros serviços de referência? É protegida e seu caso é notificado? O mesmo acontece em relação à violência praticada contra crianças e adolescentes? Questões como essas levaram a Secretaria Municipal de Saúde de Suzano, na Região Metropolitana de São Paulo, a desenvolver uma política de enfrentamento à violência, que integrou a Rede de Atenção à Saúde - em seus diferentes níveis de complexidade - e envolveu parceiros intersetoriais.
O ponto de partida foi a constatação de que os atendimentos realizados nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) eram pouco notificados para a Vigilância Epidemiológica. A maioria das notificações vinham do pronto socorro e, uma vez realizado o atendimento, por sua própria essência, cessava a comunicação entre os diferentes pontos da rede de saúde. A partir da experiência acumulada desde 2009, a psicóloga Magna Barboza Damasceno, coordenadora da Rede de Atenção às Pessoas em Situação de Violência Doméstica e Sexual, percebeu a necessidade imediata de avaliar os dados da ficha de notificação da Vigilância, para verificar a pertinência das informações e promover a busca ativa das vítimas que perderam o vínculo com a rede de saúde, além de promover ações de incentivo às notificações nas UBS.
Na Rede de Enfrentamento à Violência, foi criado o Instrumento de Monitoramento do Cuidado, com o objetivo de rastrear e acompanhar, em qualquer equipamento da rede pública ou privada, casos que envolvam vítimas de violência. “Quando reforçamos o preenchimento dos dados de notificação, estamos qualificando o serviço e embasando as ações de promoção da saúde”, explica Magna. Intensificar as notificações era o primeiro passo no desenvolvimento de uma política pautada em múltiplas dimensões, que envolve a organização dos protocolos de atendimento, articulação entre parceiros, treinamento de profissionais e matriciamento do trabalho nas unidades.
Para entender a política, tomemos um exemplo (hipotético) de uma usuária, que iremos chamar de Maria. Suponhamos que Maria tenha sofrido violência doméstica e buscado atendimento em uma Unidade Básica de Saúde. A primeira providência é notificar seu caso, para que seja enquadrado em critérios de classificação de risco, que irão definir o fluxo do atendimento. Na classificação, são considerados 13 aspectos que definem se Maria está sob risco moderado, grave ou extremo. “Violência autoprovocada é prioridade, porque sem vida não há cuidado; menores de 18 anos com ameaça de abuso sexual têm prioridade, porque a subjetividade está ameaçada”, exemplifica a coordenadora do projeto.
Marcadores sociais, relacionados à interseccionalidade, são importantes para determinar a complexidade dos casos. Maria é uma mulher negra? É uma mulher transgênero? Mora em uma área de vulnerabilidade social? Tem filhos pequenos, que também estão sob ameaça? Todos esses fatores interferem para definir o cuidado. Uma vez considerados os determinantes sociais que impactam a vida de Maria, qual deve ser o próximo passo? De acordo com a coordenadora Magna, transferir responsabilidades para a Atenção Primária à Saúde (APS) não era uma alternativa eficaz. Por isso a preocupação em criar condições para que os profissionais que atuam na ponta pudessem qualificar seu trabalho.
Nas 24 Unidades Básicas de Saúde de Suzano foram instaurados Núcleos de Prevenção à Violência (NPVs), formados por profissionais da Atenção Primária e da Rede de Enfrentamento à Violência. Os Núcleos atuam no treinamento dos trabalhadores das UBS e no acompanhamento dos casos, para definição das políticas preventivas e do projeto terapêutico singular, de acordo com as necessidades das vítimas. Se uma usuária manifesta o desejo de reconstituir seus dentes, quebrados durante as agressões, os profissionais irão acionar a rede de atenção odontológica.
Através de cinco encontros, servidores das UBS que integram os Núcleos de Prevenção à Violência passam por uma formação, para entender o manejo dos casos no território. O trabalho em equipe permite acompanhar as unidades até a alta do paciente, mantendo a continuidade do cuidado. “Implantar os NPVs permitiu acompanhar e analisar os dados, além de desenvolver uma metodologia de trabalho que deu condições para as equipes pensarem em ações de prevenção da violência, cuidado dos casos e de promoção de hábitos de vida saudáveis. Este método pode prevenir reincidências entre crianças e adolescentes, mulheres e idosos em situação de violência, além de, a longo prazo, diminuir a agudização dos casos, evitando feminicídios”, avalia a coordenadora.
O problema enfrentado por Maria talvez não se encerre no tratamento de suas dores físicas e psicológicas. Uma rede intersetorial também foi convocada para garantir a integralidade do cuidado. Caso Maria corra risco de novas agressões, será acionado o setor de segurança pública. Caso precise de suporte estrutural para se afastar do agressor, é necessária a participação da assistência social. “Precisamos entender o lugar de fala da saúde, que é do cuidado; o lugar de fala da segurança pública, que é da responsabilização; e o lugar de fala da assistência social, que é da proteção. Há casos em que é necessário cuidar inclusive do agressor para cessar a violência”.
Uma dimensão importante da política de enfrentamento à violência em Suzano é a manutenção do vínculo. Pessoas como Maria, que porventura passaram pelo atendimento inicial mas perderem o contato com o serviço, serão procuradas em suas residências. Os profissionais saem em campo para conversar com as usuárias e verificar questões como a segurança e a necessidade de manutenção da assistência, como também orientar sobre os equipamentos públicos que podem ser úteis às vítimas.
Reconhecimento
De agosto de 2020 a agosto de 2022, 773 casos de violência foram acompanhados, dos quais 113 receberam alta e 18 abandonaram o tratamento. A fila de espera para atendimento caiu de dois anos para seis meses e as notificações nas UBS cresceram acima de 2000%. Mais de 150 trabalhadores da Atenção Primária passaram por treinamento.
Sueli da Penha, moradora de Suzano, revela em depoimento veiculado pelo COSEMS de São Paulo, o quanto as agressões destruíram sua autoestima a ponto de nem conseguir se olhar no espelho. “Para que me arrumar, se eu sou tudo isso que ele fala?” - indagava antes de buscar ajuda. Ela conta que a atuação humanizada de uma profissional da Rede mudou sua relação com a vida. “Eu tinha parado de viver (...) Agora, estou cada vez mais apaixonada por mim, pela Cris (psicóloga) e amo a vida. A coisa melhor que tem é se libertar do que te prejudica”, comemora.
O trabalho vem sendo reconhecido nacionalmente, com várias premiações, a exemplo do prêmio da 17 Mostra Brasil, aqui tem SUS, o prêmio David Capistrano e a menção honrosa da Organização Panamericana de Saúde e Organização Mundial de Saúde (OPAS/OMS). “Essa experiência pode ser replicada em qualquer lugar do país, se partirmos da ideia de que a violência deve ser tratada como uma política pública e não como um programa. A política de proteção da mulher tem que ser pautada a partir dos dados de violência, porque a violência, infelizmente, já faz parte do cotidiano feminino”, finaliza a coordenadora Magna.