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São Paulo - SP

Projeto une mulheres na construção de narrativas sobre suas próprias histórias


14/04/2023 17h01

Todas são Marias. Independente da cor, da condição social, do nível de escolaridade, do endereço, do uso de substâncias psicoativas. Foi assim, pela recusa a qualquer relação hierarquizada, que um projeto atraiu a presença de mulheres da periferia de São Paulo em torno da possibilidade de narrar suas histórias de vida e vê-las representadas na escrita das profissionais de saúde. A experiência, denominada Crônicas de Marias, se desenvolve desde 2021 no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas Sapopemba (CAPS-AD), vinculado à Coordenadoria Regional de Saúde Sudeste de São Paulo, que abrange uma população de quase três milhões de habitantes das regiões de Sapopemba e Vila Prudente.

“Antes de idealizar o Crônicas, percebíamos que as mulheres quase não chegavam ao CAPS. Elas representavam cerca de 15% dos usuários e a maioria vinha por demanda judicial, por motivos como a perda da guarda dos filhos. Pensamos então em como acolher essas mulheres de forma mais diferenciada em um espaço frequentado por muitos homens”, relata a psicóloga e gerente de serviço de saúde, Mara Figueira Rocha. A hipótese é que mulheres usuárias de álcool e outras drogas se sintam tão estigmatizadas, que não se vejam no direito sequer de buscar ajuda em uma instituição do Estado.

Conduzido exclusivamente por mulheres, o projeto encontra sua força na radicalização do desejo de construir relações horizontalizadas, onde o elo que liga as participantes é a condição feminina, seja ela determinada biologicamente ou pelo reconhecimento de si como mulher. “Pensando nesses cenários em que as mulheres eram minoria no serviço e não permaneciam nos grupos, na ambiência do CAPS, buscamos um espaço para acolhê-las, onde pudéssemos ser mulheres junto com elas. Esse é um dos pilares do nosso grupo: somos mulheres escutando outras mulheres ”, afirma a terapeuta ocupacional e uma das autoras do projeto, Tatiana Natalino Vilches.

A escritora negra brasileira, Conceição Evaristo, criou um conceito denominado Escrevivências - que inspirou o Crônicas de Marias - cujo propósito é fabular e retratar as vivências de mulheres da “quebrada”, com suas rotinas muitas vezes permeadas pela violência e pela exclusão. “A gente vai registrar essas histórias porque sabemos que a cada 7 horas uma mulher é morta no país. Estamos falando de mulheres da periferia de São Paulo, pretas, expostas a inúmeras violências, inclusive institucionais, cuja porta de entrada para o uso de substâncias é um mero coadjuvante, não é a causa principal. São histórias que geram desconforto mesmo, porque abordamos aborto, abuso sexual, estupro, homofobia, sexualidade. Como valorizar a subjetividade delas, mesmo quando não se reconhecem como sujeito?”, indaga a enfermeira e idealizadora do projeto, Karoline dos Santos Germano.

Autoras como Carolina Maria de Jesus, catadora de lixo notabilizada pela escrita de seus diários que deram origem ao livro Quarto de Despejo, também inspiraram as profissionais a construirem os textos a partir de uma linguagem mais próxima do cotidiano da maioria das mulheres brasileiras, com menos formalismos linguísticos. “A metodologia é para mim uma parte muito especial do grupo. Carolina Maria de Jesus trouxe a linguagem, sem a preocupação com a forma. A partir dessa base de escrita, a gente conecta muitas outras coisas, como religião, mitologia, enredo de novela. Podemos misturar as próprias histórias para que as narrativas materializem a existência das mulheres. São histórias que podem ser apagadas a qualquer momento pela violência”, diz Karoline.

Na descrição da terapeuta ocupacional Juliana Aureana Leal, outra integrante do grupo, não há intenção de construir um desfecho para nenhuma das histórias e tão pouco dar continuidade à narrativa. “Cada história é unica. Não há uma regra para escrever ou um tema para ser escrito. A gente deixa o grupo pulsar de forma muito aberta, sem que precise haver uma história triste ou feliz. As vezes o próprio grupo é uma história. Quando a gente termina de conversar, já devolvemos a narrativa no mesmo momento, sem a intenção de um fechamento. As próprias mulheres vão se contornando a partir de suas vivências no grupo.”

O coletivo aboliu algumas regras que pudessem dificultar o acesso, como horários determinados para entrar ou sair e frequência mínima, como também permitiu a presença de crianças, caso as mães não tenham com quem deixar seus filhos. A maioria chega referenciada por outros serviços de saúde, mas também podem buscar o cuidado de forma espontânea, caso sejam usuárias de álcool e outras drogas. O Crônicas de Maria faz parte de um projeto terapêutico singular construído com a participação das usuárias.

Juliana, Karol e Tatiana compartilham juntas a condução do grupo e a escrita. Enquanto uma escreve, as outras apoiam, oferecem o olhar atento, e no final o texto é lido no grupo com participação coletiva. “Todas nós escrevemos e cada uma o faz a partir de seu lugar no mundo. Esse grupo tem uma atmosfera diferente, por sermos mulheres e por acessarmos coisas do lugar onde vivemos. A escrita sai muito naturalmente, não precisa tantas concordâncias verbais, nem censura, nem ausência de palavrões. O grupo dura duas horas e meia e a gente acaba quando ele termina, sem necessidade de continuidade. A gente escreve o tanto de histórias que surgirem, as vezes uma única história, quatro ou cinco”, descreve Tatiana.



 

Rebatizadas

Há muitas estratégias para tornar as relações entre as mulheres do grupo menos hierarquizadas. Uma delas é estimular que cada uma se rebatize ao ingressar no grupo, tendo Maria como o primeiro nome. Reforçar, inclusive pelo nome, a construção de uma identidade coletiva é também um modo sensível de fortalecer o pertencimento e preservar o anonimato. “Todas são Marias lá dentro. Cada uma escolhe um nome com Maria e esse nome tem que fazer sentido para elas. Somos iguais. O ser mulher é o que nos une, tanto que nós também contamos as nossas histórias, que passam a ter um nome de Maria”, conta Juliana Leal.

Desde o início do projeto, mais de 300 mulheres já passaram pelo grupo, que hoje conta com a presença de 13 usuárias. São histórias marcantes que vão sendo ressignificadas pela fala, a escuta afetiva e as narrativas. Histórias muitas vezes duras, como a da jovem que chegou ao grupo grávida após ser estuprada por dez homens. Ao relatar que a única oração que recordava no momento da violência era a Ave Maria, a crônica foi sendo construída em diálogo com a própria Santa Maria, mãe de Jesus.  

Mais de 200 crônicas já foram escritas e algumas gravadas em áudio em um estúdio. É um modo de possibilitar que muitas dessas mulheres, analfabetas ou semi alfabetizadas, possam revisitar suas histórias em um outro momento da vida. O coletivo é um espaço seguro, onde todas estão presentes unicamente para ouvir, preservando a identidade das mulheres, com suas histórias, suas dores e suas possibilidades de reinvenção.