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17/03/2023

Reportagem "Brasil, aqui tem SUS": Projeto em Balneário Barra do Sul-SC adapta atendimento hospitalar para respeitar costumes dos povos Guaranis

17/03/2023 14h27

O estado de Santa Catarina é dividido em oito regiões, das quais a região Nordeste se destaca pela presença de 11 aldeias indígenas distribuídas em cinco municípios. O avanço das políticas públicas voltadas à saúde desses povos, cuja população estimada é de cerca de 600 habitantes da etnia Guarani, depende do respeito às suas tradições e da garantia de direitos.

Para possibilitar uma maior aproximação com a cultura indígena e perceber as suas necessidades, sobretudo no que se refere à saúde mental, a Gerência Regional de Saúde - Joinville criou, em 2019, uma comissão especial na Câmara Técnica da Rede de Atenção Psicossocial (CT-RAPS). O grupo, composto por representantes dos municípios de Araquari, Balneário Barra do Sul, Garuva e São Francisco do Sul, passou a debater com os Guarani questões que envolvem o respeito à dignidade nos seus territórios.

“Fomos desenvolvendo estratégias de cuidado em parceria com os povos indígenas, com a participação dos caciques na aldeia. Eles nos trouxeram muitos esclarecimentos sobre como se dá o processo de adoecimento mental, sempre ligado à violação de direitos”, revela a psicóloga do município de Balneário Barra do Sul, Eloisa de Lacerda. Nos serviços de saúde, o respeito às práticas culturais indígenas se evidencia como uma necessidade, o que gerou a elaboração de uma estratégia de mediação que envolve sobretudo a atenção hospitalar.

O projeto foi concebido para responder a uma demanda apresentada à comissão pelo Polo Base Araquari - DSEI Interior Sul, onde são resolvidas questões relacionadas à Atenção Primária nas aldeias. Os profissionais receberam muitos relatos sobre a alimentação inadequada de crianças, jovens e mulheres indígenas, sobretudo gestantes e puérperas, internadas nos hospitais da região.

Os Guarani acreditam no poder dos alimentos para manter a integridade física e emocional de seus povos. “Eles estavam sofrendo por serem coagidos a comerem alimentos que não eram adequados à dieta indígena, por uma questão de saúde, de espiritualidade e de tempo de vida”, conta a psicóloga. Além da dificuldade de adaptar a dieta aos costumes dos povos Guarani nos hospitais e maternidades das cidades envolvidas, as pacientes só recebiam alta se aderissem à refeição prescrita, feita à base de ingredientes para elas proibidos, como sal e açúcar.

A ausência de escuta no hospital reverberava na rotina da aldeia. “Como a mãe não tinha o alimento adequado, quando ela vinha do hospital a regra estava quebrada dentro da nossa cultura. A gente é coletivo, pois a nossa prática é sentar e decidir coletivamente. O bebê já chegava agitado, chorando por causa da alimentação da mãe”, explica a cacique da aldeia Tekoa Tarumã, Andreia Moreira.

Com a intervenção dos profissionais da RAPS, o problema foi revertido a partir do diálogo entre as nutricionistas dos hospitais e as lideranças indígenas. O processo de mediação abriu a possibilidade de escuta e sensibilização sobre os direitos desses povos, que resultou em mudanças na rotina alimentar no hospital infantil e na maternidade.

Com a adaptação do cardápio, de acordo com as especificidades dos povos Garani, o sal do arroz, da sopa e da batata foi extraído, a proteína de origem animal foi retirada e o açucar eliminado da comida. “Sempre entrávamos em confronto com o hospital, mas desde 2019 está bem diferente. Pela primeira vez fomos ouvidos como indígenas originários dessa região”, comemora a cacique.

Saberes tradicionais

Segundo a tradição Guarani, o alimento tem relação direta com a manutenção da vida e da espiritualidade. Sete dias após o nascimento do bebê, as mulheres não devem comer nada contendo sal ou açúcar, como também nenhuma proteína de origem animal e produtos industrializados ou pães.

Durante o primeiro ano de desenvolvimento do bebê, a dieta da mãe ainda é controlada, para evitar doenças como bronquite na criança. Logo após a mestruação e no período menstrual, há cuidados específicos para impedir que a mulher tenha problemas futuros como cistos e hemorragias. “A gente tem todo esse cuidado para evitar também a doença mental. Na cultura Guarani, esses problemas vêm da alimentação. A dieta é rígida, mas é para o bem, para o futuro das crianças”, explica a cacique Andreia Moreira.

O município Balneário Barra do Sul abriga uma das 11 aldeias da região, onde vivem cerca de 40 indígenas. Embora esteja situada em área rural, a aldeia se mantém próxima à sede porque o município, de cerca de 13 mil habitantes, é pequeno. A rede de saúde é constituída por duas Unidades Básicas de Saúde (UBS), onde atuam quatro equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF), e um Pronto Atendimento (PA). Os municípios de referência para a atenção hospitalar são Joinville e São Francisco do Sul.

De acordo com a psicóloga Eloisa, os transtornos mentais nas aldeias, relacionados inclusive ao uso de álcool e tabaco, atingem de forma mais contundente aqueles que se frustram e não se adaptam ao mundo representado pela realidade branca. Há, segundo ela, números expressivos de depressão e tentativa de suicídio e muitos dos atendimentos são descontinuados em função da circulação da população Guarani entre as aldeias.

“A gente entendeu, de uma forma bastante didática e concreta, como a saúde mental para eles está ligada à violação de direitos e à impossibilidade de viver a cultura em plenitude. Precisamos manter uma agenda estruturada para estar perto dessa população, reconhecendo o quanto a saúde deles é parte da nossa responsabilidade”, finaliza a psicóloga.