14/06/2023
14/06/2023 16h45
As políticas de promoção da equidade no SUS têm um importante papel de buscar garantir um cuidado diferenciado para pessoas submetidas a condições de vulnerabilidade que impactam no seu processo de saúde e doença. Embora a equidade, um dos princípios norteadores do SUS, ainda não tenha o alcance desejado, favorecendo um número maior de pessoas, pode fazer a diferença na vida de quem o acessa de alguma forma.
É o caso da advogada Natalie Rodrigues de Oliveira, que desde 2022 vem recebendo acompanhamento regular no Ambulatório Integral de Atenção à População Transexual de Bauru-SP, conhecido como Ambulatório TT. Por considerar que a orientação sexual e a identidade de gênero são determinantes sociais da saúde, em 2011 foi publicada a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
O Ambulatório de Bauru é um dos exemplos no país do esforço de construir estratégias de enfrentamento das iniquidades e desigualdades em saúde desta população e combater a violência, a invisibilidade e o preconceito dentro dos próprios serviços de saúde.
“Não queremos super proteger e vitimizar as pessoas, mas dar autonomia, cidadania, porque é um processo doloroso até chegar na transexualidade. Primeiro vem a orientação sexual, depois a falta de reconhecimento do próprio corpo, seguida da depressão e muitas vezes da tentativa de suicídio”, descreve Josiane Fernandes Lozigia Carrapato, coordenadora do Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA), um órgão da Secretaria Municipal de Saúde onde são realizados testes rápidos de HIV, Hepatites, Sífilis e do qual o Ambulatório TT faz parte.
Natalie Rodrigues de Oliveira conheceu o programa quando frequentava o CTA para a realização de Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), um tratamento para prevenir a contaminação por HIV. Em uma das idas ao CTA, ela foi convidada pela psicóloga Ana Paula para conhecer o serviço do Ambulatório. “Me identifiquei muito com a proposta e já no segundo encontro decidi começar a terapia hormonal. Sempre fui muito afeminada, desde criança, e procurava disfarçar o máximo possível por conta do preconceito. Aderi ao tratamento para ser feliz e trazer à tona essa pessoa que eu tinha dentro de mim e escondia”, revela.
A hormonioterapia consiste no uso de medicamentos, com acompanhamento de equipe multiprofissional, que possibilita mudanças nas características de gênero. No caso de Natalie - uma mulher trans -, ela utiliza hormônios femininos e um bloqueador da testosterona. A adoção do tratamento, cujos remédios são fornecidos pelo Estado, pressupõe uma série de exames de acompanhamento, realizados periodicamente no ambulatório.
“No começo, como efeito da hormonioterapia, eu tive um pouquinho de impaciência, mas com o tempo me tornei uma pessoa muito mais emotiva. Hoje me coloco no lugar do outro, desenvolvi um forte sentimento de empatia”, revela. A inibição na produção de testosterona, o hormônio masculino, também levou a mudanças físicas em Natalie, como o afinamento dos pelos, o crescimento das mamas e maior sensibilidade na pele. “O acompanhamento tem que ser para o resto da vida”, conta.
Implantado em 12 de novembro de 2020, o ambulatório oferece a usuários e usuárias inseridos no programa avaliação social, atendimento psicológico, atendimento de enfermagem, consulta com médica endocrinologista e psiquiatra. Dependendo das necessidades individuais, eles são direcionados para diferentes tratamentos, como grupo terapêutico, cadastramento de intenção para cirurgia de redesignação de gênero, atendimento familiar e mediação nas relações laborais. Em junho de 2023, os serviços do ambulatório eram utilizados por 270 pessoas.
O trabalho conta com o envolvimento de uma equipe formada por seis profissionais comprometidas com a defesa desses grupos sociais. A equipe é composta por uma psiquiatra, uma endocrinologista, uma psicóloga, duas assistentes sociais (incluindo a coordenadora) e uma enfermeira.
“Quando o serviço foi inaugurado, não tínhamos conhecimento suficiente para atuar com esse grupo. Primeiro fomos conhecê-los, fazer uma ficha de cadastro, e a psicóloga multiplicou informações sobre sexualidade e suas complexidades durante um curso financiado pelo Programa Municipal de IST/HIV/AIDS. Mas o que tínhamos, sobretudo, era muita afinidade, empatia, capacidade de vínculo e trabalho com as populações mais vulneráveis. Nossa equipe é militante, todas estão amando estar aqui”, conta a coordenadora.
Grupo terapêutico
Na época em que chegou ao Ambulatório TT, Natalie já morava sozinha porque os pais não aceitavam sua orientação sexual. Seu contexto de vida, aliada à decisão de assumir a condição de mulher trans, exigia acompanhamento psicológico. E foi no grupo terapêutico do ambulatório que sua vida passou por grandes transformações. “Os encontros se realizam a cada 15 dias. Colocamos ali na roda as nossas angústias e nos fortalecemos porque deixamos de nos sentir sozinhas, isoladas do mundo. Para enfrentar o preconceito, aprendemos a reagir nos armando, o que não é bom. Mas a gente entra no grupo de um jeito e sai de outro, porque encontra um amparo, um suporte. Para mim fez toda diferença ser parte do projeto”, conta.
A presença no grupo terapêutico também tem fortalecido as pessoas que optaram por fazer a cirurgia de redesignação de gênero, que tem como um dos critérios a realização de acompanhamento psicológico/psiquiátrico por dois anos antes do procedimento. O ambulatório TT oferece o suporte psicológico e faz o encaminhamento para a Secretaria de Saúde de São Paulo, onde a cirurgia é realizada. A advogada Natalie está entre o grupo de homens e mulheres trans candidatos a fazer a redesignação de gênero.
O grupo terapêutico é acompanhado pela coordenadora e assistente social e pela psicóloga. A metodologia utilizada é a terapia comunitária criada por Adalberto Barreto, que trabalha a partir do que as pessoas trazem em termos de estratégia de enfrentamento. “Saímos da ideia de invisibilidade para a visibilidade, através do empoderamento, da compreensão sobre direitos, do fortalecimento da autoestima. O grupo caminha por si, eles se ajudam e nós estamos ali só para mediar, mas todos saímos melhores”, diz Josiane.
Desde março do ano passado, quando Natalie ingressou no Ambulatório TT, mudanças importantes foram acontecendo, como a reconciliação com os pais e a aceitação dos colegas de trabalho em relação às suas mudanças. “Estou realizada. Eu pensava que não tinha condição de dar um salto tão grande, mas percebi no grupo que as pessoas que realmente gostam de mim vão permanecer junto, independente da minha escolha sexual. O mais importante foi perder o medo de colocar a felicidade acima da minha aceitação pelos outros”.
A equipe do Ambulatório TT segue lutando pela manutenção e ampliação dos serviços, pela garantia de medicações importantes, como os hormônios, e pela transformação de um modelo biomédico, focado no tratamento de doenças, por um modelo cujo foco seja a saúde, a preservação da vida, da arte, do amor.
A experiência foi uma das premiadas na categoria temática Atenção Básica na 17ª Mostra Brasil, aqui tem SUS, realizada em 2022 durante o XXXVII Congresso Nacional de Secretarias Municipais de Saúde. “Sou militante do SUS, onde trabalho há 28 anos. O prêmio do Conasems foi a maior emoção que tive até hoje, porque reforça a nossa convicção de que é possível transformar a vida da população trans, desconstruindo o ciclo de violência e promovendo visibilidade, autonomia e empoderamento”, afirma a coordenadora.