20/09/2017 11h02 - Atualizada em 20/09/2017 11h02
Desde a verificação da qualidade da água que bebemos todos os dias, até a realização de um procedimento de alta complexidade, como um transplante, por exemplo, são serviços oferecidos pelo SUS, um dos maiores sistemas de saúde do mundo. Apenas durante o ano de 2014 foram realizados 4 bilhões de procedimentos ambulatoriais, 1,4 bilhão de consultas médicas, 11 milhões de internações e 19 milhões de procedimentos oncológicos. Mas afinal, quem são os usuários do SUS? A missão do Sistema Único de Saúde é atender de forma universal e integral as 200 milhões de pessoas que moram hoje no Brasil – do pobre ao rico, do recém-nascido
ao idoso.
Porém, mesmo após 27 anos de existência, muitos brasileiros acreditam nunca terem usado o SUS. Tal pensamento se dá pelo desconhecimento da amplitude dos serviços oferecidos e a falta da noção de pertencimento. Vacinação, Saneamento Básico, SAMU, tratamentos para câncer, AIDS, DSTs, transplantes, banco de sangue, hemodiálise, 840 medicamentos gratuitos, cirurgia bariátrica, até mesmo plásticas reparadoras e troca de sexo são alguns exemplos que comprovam a integralidade do SUS.
De acordo com o médico membro do Conselho Honorário do Conasems, Paulo Dantas, um dos principais responsáveis por grande parte da popula- ção não conhecer o SUS é a grande mídia. “Os jornais, na sua maioria, não informam sobre a totalidade desse sistema de saúde que está em processo de desenvolvimento. Geralmente o foco é a doença e as ações curativas, especialmente a hospitalar, com destaque para o que não funciona bem. As notícias que ‘dão ibope’ são as insuficiências e as mazelas que ainda existem, infelizmente”, ressaltou. Segundo ele, a população submetida a essa carga seletiva da monopolização midiática não reconhece o devido valor do SUS. “Caso a população tivesse acesso a informações corretas, conhecimento real dos motivos das dificuldades do SUS, da importância do controle social no Sistema, certamente teria outra avaliação, mais positiva, e teríamos mais participação na luta pelo fortalecimento da saúde pública”, afirmou.
Em outubro desse ano, o Datafolha lançou uma pesquisa indicando que o SUS tem 6% a mais de aprovação que a saúde no Brasil de modo geral, incluindo os planos de saúde. O levantamento ainda concluiu que nos últimos dois anos, das pessoas que procuraram os postos de saúde, 91,3% conseguiram atendimento. Além disso, 74% dos que utilizaram o SUS avaliaram a qualidade do atendimento com notas superior a 5, sendo que um terço dos entrevistados deram notas entre 8 e 10.
Público X Privado: setor público sub-financiado e setor privado sub-regulado
Quando um brasileiro, independente da classe social, sofre um acidente de carro, por exemplo, ele é socorrido pelo SAMU e levado à emergência do hospital público mais próximo. Mesmo se a vítima tiver plano de saúde, o SUS é responsável por garantir o socorro e até mesmo procedimentos de alta complexidade, se necessário. A vítima que possui um plano de saúde só será encaminhada para o hospital particular quando os médicos avaliarem a situação e determinarem que o quadro é estável. Os gastos com esse tipo de atendimento devem ser ressarcidos ao SUS. Perante a Lei nº 9.656/1998, é obrigação legal das operadoras de planos privados de assistência à saúde restituir as despesas do SUS no eventual atendimento de seus beneficiários, porém, nem sempre esse dinheiro volta, de fato, para a saúde pública.
De acordo com o técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Carlos Ocké, o mercado de planos de saúde parasita o Estado triplamente com “subsídios, sone- “existe uma dependência estrutural do mercado de planos de saúde com o Estado”. Carlos Ocké , técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea gação de ressarcimento e utilização pela clientela da medicina privada dos serviços do SUS”. Ocké explica que “existe uma dependência estrutural do mercado de planos de saúde com o Estado”. Os problemas que levam os pacientes ao SUS vão do mais simples ao mais complexo.
Segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), responsável pela cobrança dessa despesa às operadoras, o custo das internações somou mais de meio bilhão de reais em 2010, com um aumento de 59,7%. Já o ressarcimento totalizou R$ 393 milhões em 2014. O pesquisador do Ipea explicou que esse tipo de gasto público indireto tende a afetar o SUS de várias maneiras. “A renúncia subtrai recursos do SUS, que poderiam melhorar seu acesso e qualidade; ela refor- ça a iniquidade do sistema, piorando a distribuição do gasto público per capita para os estratos inferiores e intermediários de renda; os lobbies agravam tal iniquidade, dado que o poder econômico pode corroer a sustentabilidade política do SUS”
Antes e depois do SUS
Na década de 50 e 60, a industrialização acelerada vivida pelo país e a migração da população do campo para os municípios de médio e grande porte fizeram com que a demanda por assistência médica aumentasse drasticamente. Nessa época, os municípios, com iniciativa e recurso próprios, começaram a implantar redes de atenção primária à saúde com o objetivo de atender quem não tinha nem dinheiro, nem direitos. O professor aposentado de Saúde Coletiva da Unicamp, Nelson Rodrigues dos Santos, destacou que com a iniciativa de criar esses ‘postos de saúde’, os municípios foram os responsáveis pelo aumento da rede de saúde gratuita antes mesmo do SUS existir. “Os municípios faziam muito esforço para atender essa demanda oferecendo serviços em atenção primária à saúde. Montes Claros-MG, Londrina-PR, Caruarú-PE e Niteroi-RJ foram alguns municípios que se destacaram nessa iniciativa pioneira”.
Recordando, o antigo sistema de saúde, o INAMPS, criado em 1974 pelo desmembramento do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), que hoje é o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), tinha a finalidade de prestar atendimento médico aos que contribuíam com a previdência social, ou seja, aos empregados de carteira assinada, que nessa época não passavam de 30% da população. “Os demais brasileiros, ou pagavam as despesas de saúde com recursos próprios, ou tinham sua atenção à saúde mediante instituições de caráter filantrópico, como as Santas Casas de Misericórdia, organizações religiosas ou caritativas”, explicou Nelson.
Segundo ele, se caso fizessem uma pesquisa sobre como era a saúde no Brasil com pessoas acima de 50 anos, que viveram no país entre os anos 70 e 80, ou seja, quando ainda não existia o SUS, certamente os gráficos mostrariam uma aprovação unânime ao Sistema Único de Saúde. “O SUS foi uma das maiores conquistas do povo brasileiro, trouxe uma grande melhora da qualidade de vida da população, principalmente da parte mais pobre da sociedade”.
Assim como Nelson, Paulo Dantas afirmou que o SUS trouxe melhorias. O pediatra contou que quando se formo, iniciou o trabalho como médico do INAMPS. “Posso, por experiência própria, testemunhar sobre o que era o serviço de saúde antes do SUS: o serviço era privado, mas a regra era internação ao máximo, sem limites, mesmo que para isso espremesse os leitos nas enfermarias. Além disso, havia uma pressão sobre médicos para a permanência dos pacientes sob a ótica da tabela de remuneração, fraudes na apresentação das contas a serem pagas pelo INAMPS, dentre outros absurdos. Isso tudo por um serviço pago e para poucos que tinham carteira assinada”. Dantas relatou que “no serviço ambulatorial do INAMPS os dramas eram cotidianos: lembro de pessoas chamadas de ‘indigentes’, que não tinham direito à saúde, implorando atendimento médico para seus filhos. São cenas que até hoje guardo na memória”. De acordo com ele, as crianças sem atendimento morriam por meningite, difteria, desidratação. “Nosso sentimento era de indignação diante de tamanha discriminação e injustiça social. Porém, tínhamos convicção da importância da luta pelo direito universal, igualitário e equânime à saúde”.
Fazer muito com pouco
O professor da Unicamp afirmou que o município, desde o princípio, é o ente federado que, por estar mais próximo da população, é o que mais se preocupa em garantir os serviços. “Os municípios carregam a saúde nas costas”, acrescentou Nelson. No entanto, o que significa “carregar a saúde nas costas? ” Em 2002, o governo federal participava com 53% do financiamento público na saúde, os estados 21% e os municípios 25%. Já em 2014, a União passou a gastar 44% em saúde, ou seja, cerca de 10% a menos. Quando comparamos as curvas da participação percentual dos entes, a curva do governo federal vai diminuindo, enquanto os outros fazem um esforço desesperado para manter o investimento.
O que representa para os municípios esses 10% em média que a União diminuiu em relação aos repasses para a saúde? “Falta medicamento, faltam produtos hospitalares, faltam aparelhos que auxiliam o diagnóstico, falta verba para pagamento de funcionários. Nós nem falamos mais em investimento, falamos agora em manutenção, em fazer o máximo possível com o mínimo que temos”, essa é a situação da secretaria municipal de Natal, Rio Grande do Norte e, de acordo com a gestora Terezinha Rego, é a realidade da maioria dos municípios do país, de norte a sul. “Como vamos cumprir uma lei que define um pacto federativo, porém, as responsabilidades caem em cima do município? Não temos mais para onde correr”, lamenta.
Durante 30 anos, Aparecida Linhares Pimenta, hoje diretora do Departamento de Ações Programáticas do Ministério da Saúde, trabalhou na gestão municipal. “Antes da criação do SUS, não havia nenhuma integração entre os entes federados e nenhum repasse da União aos municípios. Fui secretária municipal de saúde de Bauru, São Paulo, na época do INAMPS. Até o ano passado, e desde sempre, a saúde pública sofre”. Segundo ela, os três pontos que pesam mais na realidade do SUS são a falta de interesse dos médicos pelo trabalho na área pública, a mídia que em momento nenhum divulga coisas boas sobre o SUS, apesar delas existirem, e principalmente, o subfinanciamento. “Quando deixei a secretaria de Bauru, em 2009, o município já estava gastando 34% dos recursos em saúde. É insustentável”, declarou.
Saúde como investimento
Além da dimensão social, o SUS tem uma dimensão econômica e industrial pouco valorizada, o que reforça sua “invisibilidade”. O Sistema Único de Saúde alia o direito de cidadania com potencial de inova- ção e geração de emprego e renda. O setor promove pesquisas e emprega milhares de trabalhadores diretos e indiretos. Mais de 8% do Produto Interno Bruto brasileiro estão ligados à saúde, superando inclusive a agropecuária.
Apesar disso, em 2014, o governo destinou para a saúde apenas 4% do investimento total, o que representa o terceiro lugar no “ranking de gastos da União”. Em segundo está a Previdência Social, com 22% dos gastos, e quem lidera o ranking são os Encargos Especiais, que totalizam 57%, dentre eles, o refinanciamento da dívida interna.
Segundo Carlos Ocké, “além de criar empregos, impulsionar a produção e estimular a inovação tecnológica, o SUS desconcentra renda, aumenta a produtividade do trabalho e pode reduzir a taxa de inflação dos serviços de saúde”. Para o especialista, a política social é uma pedra fundamental para a arquitetura de um Estado comprometido com a eliminação da pobreza, a redução das desigualdades e o crescimento econômico sustentável. Porém, mediante o cenário de subfinanciamento estabelecido nos últimos anos, se esse quadro não for revertido “as perspectivas são de redução da oferta, aumento da demanda e das filas, e queda da qualidade da atenção médica e das ações e programas no campo da saúde pública”, comentou
Patrimônio Nacional
“A saúde é direito de todos e dever do Estado”, diz o artigo 196 da Constituição Federal de 1988. No entanto, para ser transformado em lei, o SUS foi produto de uma intensa luta da sociedade brasileira que defendia um projeto de reforma sanitária. O principal elemento dessa reforma era constituir um sistema de saúde universal, de caráter público, que pudesse fazer uma integração entre as ações individuais e coletivas.
Apesar da maioria da população não reconhecer as conquistas do SUS e entendê-lo como um patrimônio nacional, o Brasil é referência internacional no tratamento da AIDS, no combate a enfermidades como a tuberculose, paralisia infantil, além de programas de imunização, vacinação, dentre outros. Em relação à Aids, o SUS oferece, em todo o território nacional, o tratamento contra a doença de forma universal e gratuita. Nesse quesito, de acordo com o relatório divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), o Brasil fica à frente de vários países que não conseguiram universalizar o tratamento.
O Programa Nacional de Imunização (PNI), promovido pela Secretaria de Vigilância em Saúde, foi considerado referência mundial pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). Antes da criação do SUS, em 1973, o país erradicou a varíola. Em 1994, a poliomielite. A utilização de vacinas contra as duas doenças projetou o Brasil como pioneiro no planejamento e desenvolvimento de campanhas de vacinação em massa. O Brasil, quinto país mais extenso do mundo, sofre muitos impasses no que diz respeito à garantia da saúde. “Questões relacionadas à dimensão territorial e populacional, desigualdades regionais e nível de desenvolvimento econômico, educacional, social, são fatores que impactam, além do financiamento do Sistema”, citou Paulo Dantas.
Na área de prevenção, o Brasil atua tanto no combate a enfermidades típicas dos trópicos e comuns em países subdesenvolvidos, como a hanseníase, tuberculose e dengue, além de lutar também contra doenças que preocupam países desenvolvidos, como a obesidade, hipertensão e diabetes. “O desenvolvimento do SUS vem ocorrendo em terreno minado por interesses privatistas e seletivos, mas, mesmo assim, consegue sobrevida e capacidade de realizações extraordinárias, em país de dimensão continental”, destacou Dantas. “Com o esforço e dedicação das secretarias municipais de saúde e o Programa Mais Médicos, a atenção básica avança e se qualifica significativamente. É necessário melhorar a articulação entre as secretarias municipais, estaduais e garantir um financiamento adequado do governo federal. Assim será possível dar um salto de qualidade no ordenamento das redes de cuidados e na integralidade das ações”, afirmou.
Dantas, quando foi perguntado sobre o que seria o “O SUS que queremos”, respondeu com firmeza “queremos o SUS que está na lei, aquele que foi conquistado na Assembleia Nacional Constituinte”, e acrescentou: “O Sistema Único de Saúde é uma utopia que se fez luta e se transformou em lei, porém, as políticas econômicas devem se submeter às políticas sociais para a essa lei virar realidade”. Já o professor Nelson Rodrigues, quando desafiado a conceituar o SUS com um outro olhar, afirmou “O SUS é uma luta constante: a luta diária do gestor municipal, do profissional de saúde, dos defensores da democracia”
(Reportagem publicada em novembro-dezembro de 2015. Confira aqui a revista na íntegra)